machismo de papel crepom

primeiramente, olaaaaar.

segundamente, um breve resumo da minha vida nos últimos meses: terminei de escrever minha dissertação de mestrado ao mesmo tempo em que trabalhava loucamente, defendi a dita-cuja, comecei a namorar, aproveitei meu tempo de depressão existencial pós-mestrado avec vazio intelectual trabalhando, dormindo, namorando, estudando para o CPE e postando fotos no instagram, entrei de férias, reorganizei minha vida INTEIRA, dormi mais, aprendi a fazer gin tônica e strogonoff, voltei a trabalhar. fim.

terceiramente, como agora eu sou uma deusa do time manegement e consegui zerar minha lista de afazeres durante as férias, estou com tempo de sobra para adiantar tarefas que nunca na vida eu adiantei, de modo que acabo de criar um banco de imagens com as coisinhas e decorações que eu pretendo fazer com as crianças no carnaval, páscoa, dia das mães e festa junina. você sabe o que vai fazer em junho? pois é: eu sei.

enfim, fui atrás de tudo isso no pinterest, é claro. carnaval? fácil. páscoa? nuss, tô vendendo ideia a R$5,00. dia das mães? dia das mães?! hm. vamos lá.

se não fosse pelas palavras “mãe” e “mother” presentes nas imagens, qualquer um juraria que eu estava pesquisando decoração para o dia dos namorados. só tem coração e flor, coração e flor, coração e flor, coraç… e eu estava atrás de umas coisas elaboradas, que fugissem do óbvio, já que este ano vou ter uma sala grande com um pé direito altíssimo, um janelão, espaço e tempo de sobra para me dedicar a isso. achei coisas bonitinhas? achei. mas só de coração e flor, coração e flor, coração e flor.

fui pesquisar, então, decoração e presentes de dia dos pais, afinal, seria só trocar “pai” por “mãe” e pronto, my work is done. superheroi, gravata, superheroi, gravata, superheroi, gravata e, pasmem, carteira. no ano 16 do século XXI, senhoras e senhores, mãe dá amor e pai dá dinheiro. não tenho nada contra corações no dia das mães, nem gravatas no dia dos pais, o problema aqui é outro: eu não posso – ideologicamente falando – reduzir pais e mães a dois estereótipos que contribuem firmemente para a manutenção do abismo social entre homens e mulheres. se eu não devo falar que azul é cor de menino e rosa é cor de menina para os meus alunos, eu também não devo afirmar, nem mesmo através de tiras de papel crepom, que carteira é coisa de homem e flor é coisa de mulher.

um outro ponto é que quando lindas cortinas de corações rosas e vermelhos são atribuídas apenas às mulheres, muito sutilmente e ano após ano, eu estou afirmando para um bando de crianças que para encontrar o amor, carinho, aconchego e afetividade que todos nós tanto precisamos sempre e para sempre, é para as mães delas que eles devem correr, frageis e doces fazedoras de cupcake vestidas de vestido floral e batom cor de boca prontas para tomar todas as dores dos outros para si mesmas. aos pais, atribuo via girlanda de gravatinhas, o papel de ser forte, invencível, poderoso, incansável, trabalhador e ryco, a quem as crianças devem recorrer quando quiserem um brinquedo novo ou estiverem sendo perseguidas por alienígenas sanguinários.

as pessoas podem ser o que bem entenderem, é óbvio, inclusive um esteriótipo ambulante; para ser contra um estereótipo não é preciso andar 180º graus e ser o avesso daquilo. é a redução que me preocupa, principalmente quando esta é bombardeada na cara de crianças muito novas ainda para relativizar e ponderar sobre questões sociais. esta imagem de mãe que cuida e ama e pai que sustenta e protege, além de ser irreal, pressiona desgraçadamente mulheres e homens que não são amáveis e invencíveis o tempo todo como as ideias de decoração do pinterest sugerem. são mulheres e homens que também são – e com todo o direito a sê-lo – distantes e medrosos, provedoras e afetivos, displicentes e neuróticos, e é preciso que meus alunos saibam disso.

já passou da hora, meus caros postadores de ideias de decoração no pinterest, de abrirmos este leque de possibilidades, não? não adianta nada uma foto de um menino brincando de boneca circulando e todo mundo achando lindo ao mesmo tempo em que não tem um só cartão de dia dos pais com a imagem de homem com uma criança no colo. se às crianças é permitido que meninas brinquem de carrinho e meninos de casinha, por que homens e mulheres seguem saídos de um anúncio publicitário dos anos 50? 

se está no meu papel de professora diluir a desigualdade de gênero entre os meus alunos, faz parte desta tarefa, também, diluir a desigualdade de gênero na imagem que eles criam de seus pais, nem que para isso eu tenha que cortar corações de papel vermelho e rosa em maio e em agosto. amor é amor.

* os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

pasárgada ou porque eu amo o pinterest

sinceramente, eu não faço ideia de como a educação infantil funcionava antes do advento do pinterest. “muito bem, júlia”, alguns responderão já torcendo o nariz para o meu excesso de contemporaneidade como quem vê um jovem chamando de hashtag o botão do jogo da velha no teclado dos telefones fixos. pois eu bem duvido.

no pinterest encontra-se as atividades, jogos, brincadeiras, projetos e brinquedos de material reciclável mais bonitos da internet. o pinterest torna qualquer ser humano in-ca-paz de jogar o rolinho de papelão do papel higiênico fora, porque lá descobre-se que com a tinta, a cola e a dobrinha certa, ele pode virar o mais belo dos brinquedos. particularmente, ando pirando nos “quiet books”, uns livrinhos feitos de feltro com uma atividade diferente em cada página, muito gostosinhos para crianças de dois a três anos, ainda que meus alunos já tenham quase cinco. há de chegar o dia em que terei a oportunidade de fazer um “quiet book”, ainda que cortar feltro seja uma tarefa muito próxima de ouvir capital inicial preso no trânsito da 23 de maio: é chato pra caralho.

mas não é só isso, meus amores. o pinterest oferece muito, muito mais. dicas de decoração, projetos arquitetônicos tipo capa-da-arquitetura-e-construção, receitas culinárias do melhor do ogro food ao crème de la crème da alimentação saudável: o potencial da quinoa, ele é infinito. e os cabelos? quantas tranças pode um ser humano aprender a fazer? e onde neste planeta eu teria acesso a vinte tipos diferentes de amarração que tornariam o mais medíocre dos cachecóis num must-have saído da capa da edição de setembro da vogue?

e os DIY [do it yourself], que me fazem querer sair correndo direto para a lojinha de aviamentos para preencher de renda uma bexiga que, potencialmente, se tornará uma bela luminária? e o que se pode fazer com um caixote de feira?! chola mais, marcelo rosembaum! os casamentos, então, são um espetáculo à parte: as fotos fazem com que eu acredite piamente que com uns 2.000 dinheiros, galhos de lavanda, potes, a quantidade ideal de luzinhas de natal e um bom filtro do instagram, pode-se ter o casamento dos sonhos. tudo tão lindo, leve e singelo, ninguém é infeliz no pinterest.

desnecessário dizer que de todas as ideias geniais que o pinterest já me deu, a única que eu coloquei em prática foi pintar umas coisas com tinta spray roxa aqui em casa. não fiz a hortinha dos sonhos, o mini-wedding charmoso, a tatuagem hipster de seta, eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, comprei minha estante de livros ao invés de fazê-la com pedaços de madeira encontrados por aí.

mas com as crianças eu faço. faço mesmo. mal acabamos de fazer uma pistinha de carros com uma velha caixa de papelão que tem túnel e tudo e já estamos trabalhando na decoração da nossa sala para o festival do livro da escola. nosso tema: dr. seuss. nossa fonte: o pinterest, é claro. das quatro zilhões de ideias geniais que lá eu encontrei, selecionei algumas para fazermos que as crianças pudessem fazer meeesmo, não só ficar olhando. exatamente por não ser o que se pode chamar de rainha das artes manuais, eu me aproximo muito deles nestes momentos: não sei o quão difícil é nem quanto trabalho vai dar colocar aquelas ideias em prática, só sei que é legal. e a lei da vida é essa: se é legal, vale a pena.

a próxima semana vai ser assim: eu meio sem saber exatamente o que fazer, tendo ideias conforme as coisas vão acontecendo. errando tanto quanto eles, me divertindo tanto quanto eles. fazendo coisas pela primeira vez, assim como eles. o pinterest me proporciona essas raras oportunidades em que substituímos o que pode ser feito pelo que queremos fazer, pelo que é legal, bonito e divertido. eu perco o controle, não espero deles um potencial a ser atingido; também, não espero de mim que meus alunos cheguem a algum lugar. o lugar está aí, já estamos nele quando o carlos pinta pra fora da linha e eu faço o mesmo meia hora depois. é difícil pintar dentro da linha, é difícil. no fim, ficou meio tortinho mas lindo, foi a gente que fez, tá com a carinha deles.

no pinterest, tudo é lindo, feliz e criativo. em contraste com a realidade, é um não-lugar, uma invenção, uma ficção. mas é lá que eu encontro uma infinidade de possibilidades e ideias para tornar essa realidade cada vez mais feia, impossível e dura num lugar mais bonito e alegre. principalmente, num lugar sobre o qual eu não tenho o menor controle, mas que com a quantidade certa de tinta spray, um belo stencil e uma caixa de papelão, eu posso fazer coisas pela primeira vez.

é emocionante fazer coisas pela primeira vez.

os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

sem-vergonha

um dos meus alunos particulares diz que tem vergonha pra tudo, chegando ao ponto de ser difícil pra mim identificar os momentos em que ele realmente está sentindo vergonha e os que ele se utiliza dela como justificativa para não realizar determinadas tarefas. no início, eu acabava tendo que dar uma rebolada fenomenal para romper com este mecanismo, para que nossas aulas de fato acontecessem e não virassem longuíssimas sessões de terapia durante as quais eu ficava – inútil e cansativamente, diga-se de passagem – tentando acessar seu emocional para, por fim, ensinar alguma coisa nos dez minutos de aula que nos restavam.

nos últimos tempos, a estratégia de humanizar a vergonha, imaginá-la como uma persona non grata em nossas vidas, tem funcionado relativamente bem: antes da aula começar, a gente avisa a vergonha que naquele momento teremos aula e que ela pode ir brincar no outro quarto um pouco enquanto isso: damos “tchau” para ela, esperamos que ela saia do quarto [pensem em um amigo imaginário ao contrário, uma espécie de inimigo imaginário. é isso.], fechamos a porta e, enfim, começamos. este processo me custa uns dez minutos de aula, contra os cinquenta dos meus primeiros encontros com esta simpática pessoinha de cinco anos fanática por dinossauros e pokémon. é a educação malandra, a educação lek, ligeira, dando seu recado. 😉

***

uma amiga minha está bastante inclinada a não chamar ninguém [repito: ninguém] para sua banca de TCC porque tem vergonha de falar em público. o projeto dela é sensacional e eu daria um litro da melhor caipirinha de maracujá do mundo para assistir a esta apresentação. vou propor a estratégia de humanizar a vergonha pra ver se rola.

***

eu também tenho vergonha de falar em público, mas ontem foi minha defesa de mestrado, de modo que não só falei em público, como também falei em público em frente a pessoas que estavam ali ou para me avaliar ou para acompanhar o resultado de um processo que elas acompanharam de perto desde o início, lê-se: grandes e amados amigos, minha mãe e meu padrasto. minha boca estava mais seca que o sistema cantareira, minha fala enrolava, em alguns momentos eu realmente não sabia o que deveria dizer nos cinco segundos seguintes. mas foi, né? meio barro, meio tijolo, não falei coisas que eu queria e deveria ter dito, erroneamente compensadas por outras absolutamente desnecessárias e idiotas. preciso treinar minha capacidade de falar em público, fazer umas aulas de retórica, uma eletiva na EAD, humanizar minha vergonha e pedir para ela sair da sala por uns momentos, talvez, antes de me arriscar a prestar doutorado. não falo bem em público nem em reunião de pais, que é uma coisa que eu faço quatro vezes por ano, imagina em sessão de defesa. coitadinha, bem feito.

***

hoje eu li um livro para os meus alunos e, em determinado momento do texto, apareceu a palavra “confiança”: quando eu vejo uma palavra mais complicadinha ou complexa no meio de uma história, sempre paro e pergunto se eles sabem o que ela significa. se souberem, ótimo, se não, eu explico antes de retomar a leitura. pois bem, parei a leitura na palavra “confiança”: “vocês sabem o que é confiança?”, perguntei, tendo recebido de volta alguns “não” e outros silêncios. na história, a palavra “confiança” estava relacionada a uma determinada relação entre pessoas e me foi automático explicar para as crianças que confiança é um sentimento de parceria quando você sabe que uma pessoa pode te ajudar quando for necessário, para a qual você pode contar segredos, compartilhar momentos difíceis etc, pois confia que ela estará ali para segurar sua mão.

em seguida, pedi que eles falassem de alguém em quem confiavam: mãe, pai, um amigo, a babá, todos falaram de uma pessoa que, eu sei, é realmente muito significativa em suas vidas. então o carlos levantou a mão para me lembrar do que eu, há menos de 24h da minha defesa de mestrado, jamais poderia ter esquecido: “teacher, ‘confiança’ é também o que a gente usa quando tem vergonha de fazer alguma coisa”. na hora eu fiquei lívida, olhando para o carlos transtornadamente encantada como se ele tivesse acabado de reproduzir o teto da capela cistina no meio de um desenho qualquer. “como eu não lembrei disso?” foi o único pensamento que percorreu minha mente naquele momento.

“é verdade, carlos”, respondi, já retomando a leitura [na verdade eu falei alguma coisa da qual não me lembro agora. nível de desmoronamento: 100%]. no fim das contas, o que a vida quer da gente é coragem, é culhão, é pedir pra vergonha sair do quarto porque, naquele momento, temos algo mais importante a fazer. aos quatro anos, o carlos já sabe disso: ele é um menino que ri de si mesmo quando faz uma besteira, que chora quando sente vontade de chorar sem se importar com que os outros vão pensar, que opina sobre qualquer coisa sem entrave algum, que pede desculpas com a facilidade, a leveza e a doçura que só os grandes de alma têm. carlos confia em si mesmo sem perceber, o que faz com que ele seja absolutamente genuíno e verdadeiro consigo mesmo e com os outros o tempo todo.

é provável que um dia, caso ele venha a defender uma dissertação de mestrado, carlos tenha a calculada audácia de convidar a vergonha para entrar na sala, pois pedir para que ela saia é para os fracos: “senta aí, fique à vontade. essa aí do seu lado é a confiança: podem ficar amigas agora”.

* os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

clube dos cinco

Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

[elisabeth bishop traduzida pelo paulo henriques brito]

contando por alto, eu já “perdi” algo em torno de 95 alunos em seis anos de sala de aula e todas estas perdas podem, tranquilamente, ser subdivididas em uma série de categorias: houve as perdas dolorosas, as não sentidas, as, de certa forma, celebradas [ai, teve mesmo, me desculpem], as desejadas e as naturais, que fazem parte do jogo de dizer “tchau” no fim do ano. e é isso mesmo, c’est la vie. as crianças vão embora, eu sigo em frente e já me acostumei à dinâmica de conviver intensamente com um grupo de pessoas durante nove meses e me separar delas em seguida para, então, conhecer, me adaptar e conviver intensamente com um novo grupo.

em fevereiro, eu tinha dez alunos em sala. em março, nove. no início de agosto, oito. a partir de amanhã, cinco. isso, isso mesmo. cinco crianças e só. inaugura-se então uma nova categoria de perda que, sendo nova, eu estou bem longe de estar acostumada: a perda em massa. minha turma, agora, é metade do que um dia já foi e isso diz muito para mim, para as crianças que ficaram, para a escola, e sobre a maneira como todos nós lidaremos com o fato de que metade de nós foi embora.

pois bem. existe um mito de que quanto menos alunos você tem, melhor sua vida é, o que é absolutamente verdadeiro. é claro que ensinar cinco é mais fácil que ensinar dez ou dezoito. é óbvio que escovar os dentes de cinco é mais rápido que escovar os dentes de dez ou dezoito. evidentemente, enquanto as demais professoras da escola estiverem se descabelando para dar conta de escrever seus dez ou dezoito relatórios no fim do ano, eu já vou poder estar comendo panettone e assistindo netflix de boa  bolando montes de atividades e brincadeiras extras divertidas para o meu mínimo grupo de cinco. acho que minha vida é melhor que a das outras? não. estou feliz com essa situação? não. meus alunos estão achando normal serem reduzidos pela metade? não. não mesmo.

eu não sou, nem pretendo ser, muito versada em engenharia, mas me parece óbvio que uma construção aguenta até um certo ponto de abalo, depois ela desmorona. quando há, numa sala de aula, um número grande de alunos e cinco deles saem ao longo do ano, aparecem umas rachaduras, umas infiltrações aqui e ali facilmente identificáveis, mas que não representam perigo algum para a estrutura da turma. quando estes cinco alunos representam, porém, metade da estrututra, é como se uma parte significativa das colunas de sustentação de um prédio tivesse sido atingida [ai, socorro, tá certo isso? algum(a) engenheiro(a) me lê?] e medidas precisam ser tomadas para que tudo não desmorone de vez.

em uma semana, meus alunos perderam três colegas de sala, além dos dois que já haviam ido. três crianças que, sem sombra de dúvidas, exerciam papel importante no equilíbrio do grupo, no bem-estar social e afetivo dos demais e, consequentemente, no meu. enquanto o carlinhos estivesse com o antônio, eu sabia que ele estava bem. enquanto eu tivesse a luiza no grupo, eu não teria que me preocupar com quem a carol iria brincar na hora do recreio. enquanto o nicolas estivesse entre nós, eu sabia que tinha ali uma das pessoinhas mais alegres e festeiras que já conheci.

agora eu não sei mais. não sei como o carlinhos vai estar amanhã. não sei com quem a carol vai brincar na hora do recreio nem terei na manga o nicolas para dar aquela animada na galera. dentre as medidas que serão tomadas, está juntar meu clube dos cinco com outra turma em algumas aulas extras, o que significa ainda mais mudanças: conhecer, se enturmar, aprender a conviver e encontrar uma alegria entre outras pessoas com as quais sua relação foi, até agora, absolutamente superficial ao mesmo tempo que, entre nós, vamos ter que encontrar uma nova forma de viver, apesar de todas as perdas, apesar de estarmos pela metade.

na sexta-feira, eu chorei ao acordar, no caminho para a escola e ao encontrar, pela última vez, a carol e a luiza brincando juntas perto do portão. apesar da festa de despedida, do imenso bolo de brigadeiro trazido pelas mães para celebrar o que, naquele momento, me parecia incelebrável e das minhas patéticas tentativas de animar as crianças dizendo que eles ainda se encontrariam fora da escola, que a vida é assim mesmo, que a saída de seus colegas não significa o fim da amizade entre eles, eu mesma não botava fé na minha animação nem nas palavras que saíam da minha boca. perdemos, sim, meus queridos, perdemos umas colunas, tá doendo, vai doer e qualquer dia desses a gente vai começar a enxergar o ganho dessa mudança mas, por ora, é só perda, perda, perda e é uma grande merda tudo isso: era isso que eu queria poder dizer, porque perder é perder. perder doi e nós perdemos pra caramba; tivemos nosso 7 x 1 particular e eu era o david luiz.

depois de chorar mais um tanto e de ensaiar este post em vão, acabei capotando à tarde, à noite saí para tomar caipirinha de maracujá [que é, e sempre será, a melhor caipirinha, repassem] e, em vários momentos ao longo do fim-de-semana, esqueci completamente deste assunto, mas amanhã cedo ele será a única coisa que eu vou conseguir pensar. vou cuidar para que os cinco fiquem bem, se divirtam, recebam a atenção e o colo que talvez necessitem até que nossa metade vire um inteiro menor, é verdade, porém um inteiro.

pois bem. existe um mito de que quanto menos alunos você tem, melhor sua vida é, o que é absolutamente verdadeiro, mas só quando este “menos” significa apenas pequenas rachaduras e infiltrações. quando se perde uma coluna de sustentação, o “menos” é uma merda, um 7 X 1, uma perda; e perder doi.

*os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

5 coisas que eu gostaria que os pais dos meus alunos soubessem

uma querida amiga, que também é professora, há pouco me mandou esse texto, chamado ‘5 coisas que a professora do seu filho gostaria que você soubesse: ele pode fazer mais do que você pensa‘, um ótimo e introdutório texto sobre o triângulo pais-crianças-professores, independente da fase da vida escolar da qual façamos parte. como eu concordo com os cinco itens elencados pela camila, fiquei pensando sobre essas questões e resolvi adicionar mais algumas coisinhas a ele, baseadas única e exclusivamente nos meus dramas  nas minhas experiências em sala de aula e relacionamento com os pais.

1. eu acredito no seu filho.

esse primeiro item bate de frente com o terceiro da camila, mas só porque ambos são complementares e dependem de cada caso. ainda que crianças sejam seres extremamente imaginativos e criativos, a não ser que seu(sua) filhx chegue na escola contando que um dinossauro azul fantasiado de peppa pig tomando sorvete de chocolate apareceu na sua casa ontem, eu vou acreditar no que elx diz. coisas importantes para a minha organização e administração da coisa toda são conferidas, é claro, como sair da escola com algum colega, viagens, doenças etc, mas, de resto, eu acredito. aí você pode se perguntar: ‘mas por que ela acredita, criança diz cada uma…’. oras, eu acredito porque é com elas que eu convivo. eu acredito porque elas precisam acreditar em mim também. eu acredito porque é tudo que eu tenho.

2. eu não posso ficar doente. nunca.

eu já recebi criança de quatro anos usando fralda [isso, isso mesmo, fralda! fralda! fraldaaaa!] porque estava com diarreira, criança espirrando umas melecas verdes absurdas, criança que “passou a noite inteira acordada com febre mas a gente mediu agora de manhã e tá normal”, criança com olho vermelho, inchado e secreção, criança com umas perebas que manooooo quequé isso?!?!, criança em tudo quanto é estado de saúde. certo. eu sei que everyone’s got to make a living e que não é exatamente simples para os pais deixarem uma criança doente em casa mas, acreditem, é muito mais complicado mandá-la para a escola. tem a questão de saúde dos colegas, que é importante, é claro, mas acreditem de novo, a minha [e de todos os adultos que convivem com as crianças dentro da escola] é mais, muito mais. a questão é matemática e simples: uma professora sem um, dois ou cinco alunos na sala segue fazendo seu trabalho normalmente. dez, treze ou dezoito alunos sem professora têm suas rotinas alteradas, sobrecarregam a assistente [ou a professora, caso seja a assistente que esteja doente], ficam sem parte do conteúdo e ainda causam preocupação nos pais, que querem saber o que aconteceu, quando ela volta, quem cuidou das crianças, se ficou tudo bem etc etc. long story short, eu não posso cuidar do seu filho doente porque se eu ficar doente eu não posso cuidar da sala. e eu não sou professora particular. eu sou professora de sala.

[uma vez aconteceu uma epidemia de virose na escola. um dia, uns oito ou nove funcionários, entre assistentes e professores, faltaram. simplesmente não tinha gente suficiente para cuidar de todas as crianças e a coordenação teve que rebolar loucamente para rearranjar os funcionários que estavam presentes. nesse dia, minha assistente foi realocada e eu passei a manhã sozinha com dezesseis crianças. é isso que acontece quando criança doente vai para a escola. DE NADA.]

3. eu não abro a mochila do seu filho deliberadamente.

eu tenho a impressão de que alguns pais acham que eu faço uma varredura em todas as mochilas, de todos os alunos, todos os dias, de fevereiro a dezembro. acredite, eu não faço. o máximo que eu e a teacher lymda fazemos é abrir a mochila e pegar a agenda da criança rapidamente, logo quando ela chega à escola. e por que a gente faz isso? tcharãm, para. ver. se. tem. algum. recado. se não tiver recado algum, aquele pacotinho, aquela tiarinha, aquela fantasia do batman que está lá dentro sem lenço e sem documento continuará ali. vira e mexe eu leio recados do tipo “ontem mandei o presente de aniversário do joãozinho mas ficou na mochila…” e tudo que eu penso é que ter escrito, no dia anterior, “segue presente para o joãozinho” é uma frase muito mais curta de se escrever. entenda que eu fico entre invadir sua intimidade e fazer meu trabalho direitinho, que inclui repassar objetos e recados. desta forma, se houver alguma coisa na mochila do seu(sua) filhx que eu precise ver, é bacana avisar. just sayin’.

4. se seu filho não tem modos, eu acho que a culpa é sua, sim.

existem muitos textos, textões, posts e demais gêneros textuais do século XXI discorrendo sobre a educação das crianças francesas jogados aí pela internet. a impressão que dá é que as crianças francesas, aos três anos, sabem comer lagosta à mesa com um guardanapo de tecido no colo. HAHAHAHAHAHA du-vi-do. mas se tem uma coisa da qual eu não duvido são bons modos mínimos. ao longo dos anos, eu tive que baixar tanto minha expectativa em relação a educação mínima e etiqueta que, hoje, uma criança que senta para comer já enche meu coração de alegria. gente, pelamordedeus, eu não tô pedindo muito. são vinte ou trinta minutos sentados ao lado dos amigos [eu não sento] comendo fruta, tomando suco e comendo uma porção de carboidrato [pão, bolo e tals]. se seu filho não consegue ficar sentado durante esse tempo, se não consegue comer pão francês sem picá-lo antes ou comendo só o miolo, que é molinho, se ele surta ao ver uma semente de melancia, vocês me desculpem, mas eu acho que o problema é de vocês, sim. eu não sei o que os meus alunos comem em casa. eu não sei como essa comida é preparada. mas, olha, minha geração inteira comeu coisas duras com semente e, ainda assim, nós somos a geração mais preguiçosa da história. de modo que eu não sei o que vai acontecer com os filhos de vocês. não sei mesmo.

5. eu sei de coisas que você não sabe.

para isso, eu não tenho uma formação especial. não aprendi nada na faculdade, no mestrado, em cursos livres etc. eu simplesmente não sou da sua família e tenho que lidar apenas com o comportamento social que seu filho tem. pode pensar em mim como o primeiro chefe do seu filho, eu não me importo com a alcunha. mas talvez, TALVEZ, eu saiba de mais coisas do que você. eu sei qual é o jogo que seu filho joga. eu sei como ele se comporta sem um responsável por perto. eu sei, talvez mais do que você, que tipo de ser humano ele se tornará. e, talvez, eu possa estar errada.

bonus-coisas que eu gostaria que os pais dos meus alunos soubessem: eu não faço a menor ideia do que eu estou fazendo. assim como você. talvez este vire um post eterno. 😉

*os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.