sem-vergonha

um dos meus alunos particulares diz que tem vergonha pra tudo, chegando ao ponto de ser difícil pra mim identificar os momentos em que ele realmente está sentindo vergonha e os que ele se utiliza dela como justificativa para não realizar determinadas tarefas. no início, eu acabava tendo que dar uma rebolada fenomenal para romper com este mecanismo, para que nossas aulas de fato acontecessem e não virassem longuíssimas sessões de terapia durante as quais eu ficava – inútil e cansativamente, diga-se de passagem – tentando acessar seu emocional para, por fim, ensinar alguma coisa nos dez minutos de aula que nos restavam.

nos últimos tempos, a estratégia de humanizar a vergonha, imaginá-la como uma persona non grata em nossas vidas, tem funcionado relativamente bem: antes da aula começar, a gente avisa a vergonha que naquele momento teremos aula e que ela pode ir brincar no outro quarto um pouco enquanto isso: damos “tchau” para ela, esperamos que ela saia do quarto [pensem em um amigo imaginário ao contrário, uma espécie de inimigo imaginário. é isso.], fechamos a porta e, enfim, começamos. este processo me custa uns dez minutos de aula, contra os cinquenta dos meus primeiros encontros com esta simpática pessoinha de cinco anos fanática por dinossauros e pokémon. é a educação malandra, a educação lek, ligeira, dando seu recado. 😉

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uma amiga minha está bastante inclinada a não chamar ninguém [repito: ninguém] para sua banca de TCC porque tem vergonha de falar em público. o projeto dela é sensacional e eu daria um litro da melhor caipirinha de maracujá do mundo para assistir a esta apresentação. vou propor a estratégia de humanizar a vergonha pra ver se rola.

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eu também tenho vergonha de falar em público, mas ontem foi minha defesa de mestrado, de modo que não só falei em público, como também falei em público em frente a pessoas que estavam ali ou para me avaliar ou para acompanhar o resultado de um processo que elas acompanharam de perto desde o início, lê-se: grandes e amados amigos, minha mãe e meu padrasto. minha boca estava mais seca que o sistema cantareira, minha fala enrolava, em alguns momentos eu realmente não sabia o que deveria dizer nos cinco segundos seguintes. mas foi, né? meio barro, meio tijolo, não falei coisas que eu queria e deveria ter dito, erroneamente compensadas por outras absolutamente desnecessárias e idiotas. preciso treinar minha capacidade de falar em público, fazer umas aulas de retórica, uma eletiva na EAD, humanizar minha vergonha e pedir para ela sair da sala por uns momentos, talvez, antes de me arriscar a prestar doutorado. não falo bem em público nem em reunião de pais, que é uma coisa que eu faço quatro vezes por ano, imagina em sessão de defesa. coitadinha, bem feito.

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hoje eu li um livro para os meus alunos e, em determinado momento do texto, apareceu a palavra “confiança”: quando eu vejo uma palavra mais complicadinha ou complexa no meio de uma história, sempre paro e pergunto se eles sabem o que ela significa. se souberem, ótimo, se não, eu explico antes de retomar a leitura. pois bem, parei a leitura na palavra “confiança”: “vocês sabem o que é confiança?”, perguntei, tendo recebido de volta alguns “não” e outros silêncios. na história, a palavra “confiança” estava relacionada a uma determinada relação entre pessoas e me foi automático explicar para as crianças que confiança é um sentimento de parceria quando você sabe que uma pessoa pode te ajudar quando for necessário, para a qual você pode contar segredos, compartilhar momentos difíceis etc, pois confia que ela estará ali para segurar sua mão.

em seguida, pedi que eles falassem de alguém em quem confiavam: mãe, pai, um amigo, a babá, todos falaram de uma pessoa que, eu sei, é realmente muito significativa em suas vidas. então o carlos levantou a mão para me lembrar do que eu, há menos de 24h da minha defesa de mestrado, jamais poderia ter esquecido: “teacher, ‘confiança’ é também o que a gente usa quando tem vergonha de fazer alguma coisa”. na hora eu fiquei lívida, olhando para o carlos transtornadamente encantada como se ele tivesse acabado de reproduzir o teto da capela cistina no meio de um desenho qualquer. “como eu não lembrei disso?” foi o único pensamento que percorreu minha mente naquele momento.

“é verdade, carlos”, respondi, já retomando a leitura [na verdade eu falei alguma coisa da qual não me lembro agora. nível de desmoronamento: 100%]. no fim das contas, o que a vida quer da gente é coragem, é culhão, é pedir pra vergonha sair do quarto porque, naquele momento, temos algo mais importante a fazer. aos quatro anos, o carlos já sabe disso: ele é um menino que ri de si mesmo quando faz uma besteira, que chora quando sente vontade de chorar sem se importar com que os outros vão pensar, que opina sobre qualquer coisa sem entrave algum, que pede desculpas com a facilidade, a leveza e a doçura que só os grandes de alma têm. carlos confia em si mesmo sem perceber, o que faz com que ele seja absolutamente genuíno e verdadeiro consigo mesmo e com os outros o tempo todo.

é provável que um dia, caso ele venha a defender uma dissertação de mestrado, carlos tenha a calculada audácia de convidar a vergonha para entrar na sala, pois pedir para que ela saia é para os fracos: “senta aí, fique à vontade. essa aí do seu lado é a confiança: podem ficar amigas agora”.

* os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

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