use camisinha!

– essa criança não tem casaco, júlia?, perguntou minha coordenadora no portão enquanto eu entregava a maria eduarda para o pai hoje na hora da saída.

– oi?, respondi.

– tá ‘mó’ frio, ela tá só de camiseta, disse a coordenadora ligeiramente atordoada por ver uma menininha de quatro anos vestindo apenas galochas rosas, meia calça, camiseta de manga comprida e vestidinho, quando ela mesma parecia seguir firme em seu projeto esquimó iniciado na última segunda-feira.

– ela não sente frio, eu disse calmamente.

– a maria eduarda? nossa, ela nunca coloca o casaco, disse a professora da maria eduarda do ano passado que estava ali por perto, mais uma vez demonstrando ser do lindo tipo de pessoa que só se mete na conversa alheia para acrescentar [<3].

– viu? ela consegue tirar o casaco até enfiando os braços pela gola, acrescentei.

a maria eduarda não sente frio. ou até sente, mas nada que uma camisetinha de manga comprida, vestidinho, uma meia-calça colorida e galochas rosas não resolvam, e ela tem passado os últimos dias muito bem, obrigada, mesmo usando metade da quantidade de casacos da média nacional [parece alguém que eu conheço mas não vou citar nomes porém aproveito para mandar um beijo pro paulo beijo paulo!].

há uns dez dias eu dei um workshop sobre como tirar o moletom para os meus alunos, já que a maioria se embananava toda para tirá-lo. eles aprenderam direitinho e todos conseguiram tirar o casaco sem dar um soco no nariz do amiguinho ao lado sem querer nem recorrer a tesouras para isso. a maria eduarda, é claro, não precisou de aulinha porque é provável que ela tenha aprendido a se despir sozinha antes mesmo de conseguir digerir alimentos sólidos. o workshop foi a pior ideia que eu já tive desde que julguei que eles já tinham internalizado a necessidade de levantar a manga dos mesmíssimos moletons para lavar as mãos e escovar os dentes. não me perguntem sobre o meu humor neste dia, por favor, obrigada.

o lindo momento em que eu ensinei mais uma lição de autonomia para as minhas crianças se virou contra mim mesma nesta semana gelada à qual estamos sobrevivendo. de repente, não mais do que de repente, uma criança começa a tirar o casaco e todas as outras resolvem fazer o mesmo, criando o ‘festival das manguinhas loucas’, conforme eu apelidei. recorro ao pensamento crítico-reflexivo e discorro sobre o frio que está, sobre como o casaco vai deixá-los protegidos, sobre ficar doente, sobre as minhas lembranças infantis do inverno porto-alegrense e nada. festival da manguinha louca.

recorro à ditadura e imponho regras como ‘ninguém vai tirar o casaco hoje’ ou ‘sem casaco não vai para o parque’ e funciona relativamente melhor, menos com a maria eduarda, é claro, que fica de bico ou chora quando o assunto é colocar o casaco, e minha vida na última semana tem sido um pequeno preview do que me aguarda para os próximos meses: falar a palavra ‘casaco’ a cada quatro minutos. ‘coloca o casaco’ é o ‘use camisinha’ da educação infantil.

educação é um negócio muito louco, bicho. adianta falar, falar, falar? até adianta, né, não sei. vejo o o aviso no maço de cigarro de que fumar faz mal e sigo fumando todo dia, ainda que eu seja capaz de fazer uma lista dos malefícios do cigarro. o governo faz campanhas e mais campanhas sobre o uso de camisinha e todos conhecemos a prima do cunhado da vizinha do ex-chefe que esqueceu da camisinha e pimba! engravidou, mesmo sabendo que engravidar é um dos riscos de se transar sem camisinha. a estratégia de falar, falar, falar funciona na medida em que você está disposto a ser ignorado 843 vezes até ter sua recomendação atendida.

seguimos, então, confiando no damage control e na capacidade de autogestão do sujeito. um dia a gente olha para os avisos de outra forma e resolve mudar de atitude. para de fumar, não esquece nunca mais da camisinha, come fruta, bebe bastante água… coloca o casaco. o outro lado já está exaurido de tanto repetir a mesma ladainha, mas um dos grandes aprendizados do educador talvez seja exatamente este: seguir em frente mesmo se sentindo inútil e se deleitar a cada utilidade encontrada em você.

dia desses a maria eduarda estava sentada no banco perto do portão toda encolhida, só de camiseta de manga comprida. quantas vezes eu já tinha falado sobre o casaco? inúmeras. foi por falta de aviso? não. mas não houve exaustão que me impedisse de chegar até aquela coisinha fofa e linda e dizer:

– vamos colocar o casaco, duda? 

– uhum, ela me respondeu.

 

 

* os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

 

 

7 opiniões sobre “use camisinha!

  1. Daria pra vc vir dar um workshop aqui no Brócolis? Eu também me embanano com o moletom e 98% das vezes, acabo com a cabeça presa, xingando palavrões horrendos e assustando os gatos. De resto, sou da turma da Eduarda: um par de galochas cor-de-rosa resolvem quase todo os meus problemas. ❤ ❤

    Curtir

  2. Guria, gosto muito dos teus textos, sempre repasso pros amigos que tem filhos pequenos, que já tiveram filhos, que tem sobrinhos, que fizeram pedagogia comigo. Sei lá, acho que já mandei pra todo mundo. Gosto muito da forma como tu vê as coisas/situações e como tu vai te observando ao longo do processo.
    Obrigada pelos textos.
    Terla

    Curtir

  3. Lindo texto, lindo lindo!
    Espero q de alguma forma meu filho encontre em sua trajetória professoras e cuidadoras tão sensíveis.
    (ele tb nunca sente frio. Infelizmente aos 10 meses ñ possui autonomia pra tirar o casaco, pobrezinho)

    Curtir

  4. eu pertenço ao time da eduarda: desde pequeno, não gosto de usar casaco. não uso hoje, não sinto tanto frio. ler esse texto tão gostoso e bem escrito foi quase uma viagem àqueles tempos em que eu ainda não podia dizer que gostava de ter os braços livres. 🙂

    Curtir

comente