sobre a ordem das coisas

nunca observei de fato uma criança, nunca convivi com elas, nunca soube o que são, para que servem, do que se alimentam. sou filha única, neta caçula em ambas as famílias, não há em minha história de vida qualquer episódio em que eu brinquei, pulei, cuidei, vi nascer umx priminhx. a priminha sou eu. também fui mimada e nunca me faltou nada; na verdade, seria mais honesto dizer que eu sempre tive coisas demais. brinquedo, danoninho, roupas, ballet, gente pra me abraçar e me dizer que eu era linda no matter what, gente pra me beijar e dizer que eu era inteligente no matter what, inglês, dinheiro, escola particular, oportunidades, viagens e vagas na universidade pública. eu ainda fui criada nos jardins. sócia de nascença do fantástico clube da subprefeitura de pinheiros. nunca precisei cuidar de alguém que não fosse eu mesma e colecionava alguns bons insucessos. eu era uma idiota.

mas a vida opera na base da ironia, nossos planos não servem para muita coisa a não ser para nos dar uma falsa sensação de controle e, aos vinte um, como resultado de uma sequência de decisões acertadas, eu comecei a trabalhar na escola onde eu dou aula até hoje. cargo: professora-assistente de G1. de repente, eu era parcialmente responsável por um grupo de crianças entre um e dois anos. um dia eu escrevo sobre esse ano, sobre esses bebês e sobre essa professora que me acolheu tão assustada e inexperiente quanto seus alunos. o foco aqui é que, aos vinte e um, sem crianças, priminhxs ou sobrinhxs, eu passei a lidar diariamente com fraldas, naninhas, chupetas, camisetas tamanho 2 e pacotes de baby wipes. eu nunca quis ser professora, ou mãe; não me foram dados os quatro anos ou os noves meses que antecedem o ato de cuidar de alguém. eu simplesmente cuidei e isso mudou a minha vida.

idiota > sangue – lágrimas – saliva – catota – vômito – xixi – cocô > menos idiota 

quando falo em cuidar, não me refiro apenas a trocar fralda, limpar um machucado ou remover objetos cortantes e mini coisas que possam caber em mini orelhas, mini narinas e mini bocas. essa parte é fácil e rapidamente desenvolvi os olhos supersônicos e os quatro pares de braço com os quais eu empreendo a tarefa de manter todo mundo limpo e vivo. cuidar e ensinar se misturam e eu pretendo nunca descobrir onde se localiza a fronteira entre os dois exercícios, o que ficou mais evidente quando passei a ser professora das crianças de quatro anos. cuidar é ensinar, ensinar é cuidar e garantir condições para o amadurecimento emocional, afetivo, cognitivo, sensível e social de uma criança. não me sobra tempo algum para pensar em mim.

idiota > termômetro – band-aid – rinosoro – alivium – hirudoid – gelo > menos idiota 

não demorou muito para que o cuidar ultrapassasse as fronteiras da escola e provocasse mudanças estruturais profundas na minha vida; existe algo de mágico em ser a última em sua lista de prioridades. eu mudei, e muito, nos últimos cinco anos e chego a não reconhecer a pessoa que era antes das crianças. não que eu fosse uma egoísta insuportável, longe disso; eu só tinha muito de tudo para mim. eu era uma idiota, já disse. aos vinte e um, eu passei a ter preocupações ‘de adulto’ e a falar sobre assuntos sobre os quais eu nunca havia precisado pensar. substituí parte do tempo em que debatia literatura em mesas de bar por discussões sobre a melhor maneira de fazer o zezinho parar de morder os colegas. questões existenciais, sofrimentos, formação intelectual, tudo, tudo, perdeu importância diante de grandes questões da [minha] humanidade como ‘por que a zezinha chora todo dia para entrar na escola?’.

idiota > pai – mãe – irmão – vó – babá – babáquevemquandoababátádefolga > menos idiota

toda a minha relação com o mundo se transformou a partir do momento em que eu comecei a cuidar. algumas pessoas se foram, outras muitas chegaram. eu passei a empregar um esforço genuíno para compreender as estruturas que nos formam e nos fazem assim, tão imperfeitos, ainda que a imperfeição alheia me ferisse. fiquei mais atenta a tudo e a todos, mais compreensiva, menos impulsiva, mais exigente, menos raivosa. envelheci mais anos do que os cinco que separam os vinte e um dos vinte e seis quase vinte e sete. criei, também, um verdadeiro fascínio por pessoas mais velhas do que eu.

idiota > moça da limpeza – assistente – co-worker – chefe 1 – chefe 2 – chefe 3 > menos idiota

ainda que eu colecione muitos insucessos, emane defeitos pelos poros, seja chata, crítica demais, dedicada de menos, ansiosa, distraída, preguiçosa, intransigente, chegada a uns excessos e vícios e ainda lute arduamente contra a idiotia minha de cada dia, senti vontade de registrar o quanto as crianças mudaram a minha vida e um post sobre mim, não sobre elas, é uma tentativa disso. mudaram tanto que eu abracei a ideia de ser a última em tudo, que eu não me importo em circular por aí com roupas muito parecidas com as de um pintor de parede, que eu aprendi muito sobre pedagogia, que meu encantamento privado passou a ser insuficiente e eu comecei a contar nossas histórias para os meus amigos e o mundo ficou pequeno de novo e passei a contá-las no facebook e insuficiente > mundo pequeno de novo > menor ainda, eu criei um blog só para isso. qualquer dia eu pixo uns muros.

e se esse post soa muito pessoal, é só porque todo mundo que passou e de alguma forma permanece na minha vida foi indiretamente afetado por essas crianças, inclusive, é claro, quem lê este blog. talvez este seja só mais um post sobre elas mesmo.

2014 chegou, nossos planos são muito bons mas os acasos são ainda melhores! feliz ano-novo!

 

* os nomes das crianças são fictícios e o nome e localização da escola jamais são mencionados neste blog por questões de proteção à intimidade.

7 opiniões sobre “sobre a ordem das coisas

  1. eu adoro ler teus textos, acho que me vejo um pouco neles. mas eu sou meio que o tu de antes. eu ainda vou fazer 20. eu ainda vou pro segundo semestre do curso de letras. eu ainda estou planejando estagiar em escolas de crianças. eu não penso em ter filhos por não achar que eu tenho capacidade psicologica pra isso, haha. e eu acho lindo demais, esse carinho pelo cuidar/ensinar crianças. enfim, me alegro em ler teus textos.

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